sexta-feira, 30 de novembro de 2012

capítulo um descendentes diretos










Rio de Janeiro, Brasil — 2031
Talles 
Dia de entrega dos boletins na escola é sempre horrível. Eu estudo num colégio interno e isso só piora a situação. A única coisa que eu prezo no boletim é a classificação. É bom quando você vê o bom resultado dos boletins, mas é péssimo esperar.
        Eu tenho um ponto fraco. A cada bimestre alguém fica em primeiro lugar na classe. Eu estou em primeiro lugar em um bimestre e em segundo no outro. Quando eu fico em segundo, eu estudo bastante para conseguir no outro bimestre ficar em primeiro. No final eu sempre consigo, mas aí entra o meu ponto fraco: ao ver que eu estou em segurança, por estar a essa altura, eu relaxo nos estudos. Nesse bimestre minha vida escolar foi basicamente ficar sentado com da bunda em frente ao computador navegando nas redes sociais. Estou perdido e nervoso, com certeza ficarei em segundo lugar. Que merda, eu nunca aprendo! Eu sempre vou entregar minhas horas vagas à internet
        Mas eu ocupo a maior parte do meu tempo com o meu propósito real. Nessa escola eu tenho um inimigo. Eu odeio essa pessoa e essa pessoa me odeia. O motivo para eu ser seu inimigo é a nossa semelhança. A semelhança assustadora que nós temos um com o outro atrapalha na formação da minha personalidade. Vou te mostrar por que nossa semelhança é tão assustadora. Eu tenho cabelos escuros, ele também; eu sou alto e ele, também; eu tenho um corpo definido e ele, também; eu adoro basquete e ele, também; sou inteligente e ele, também.
        Porém, há duas semelhanças que são definitivamente esquisitas: 1- eu tenho olhos cor de violeta e ele também tem. Já é considerado raro uma só pessoa ter os olhos dessa cor. Imagine, então, quando você reúne duas pessoas com essa mesma cor nos olhos. Poderia até dizer que essas duas pessoas são parentas.
        2- Nós temos o mesmo sobrenome do meio. Meu nome é Talles Lerman Lindemann e o nome dele é Carter Stiffler Lindemann.
        Nós dois não gostamos dessas tais semelhanças. Estamos ganhando a fama de parentes e eu não me sentiria nada confortável sendo da mesma família que Carter. Eu adoraria ter dinheiro para comprar uma lente de qualquer outra cor que fosse para por nos meus olhos. Seria uma semelhança a menos.
        Eu estava aproveitando o recreio para jogar basquetebol, meu esporte favorito, com meus amigos, e Carter estava no time adversário. O jogo sempre se tornava chato quando se tinha Carter no outro time, pois eu fazia muitas cestas e Carter,... também. Foi o momento em que eu consegui a posse da bola. Fui quicando-a até a cesta e Carter vinha me acompanhando. A minha rapidez não cegava a dele e já estava vendo que eu não conseguiria fazer a cesta. Ou talvez sim. Nessa hora, Carter pôs seu pé esquerdo na frente do meu pé direito e eu quase caio. Mas eu consegui manter o equilíbrio.
        — O que foi que acabou de acontecer? — Perguntei, aproximando-me dele.
        — Deixe-me ver... A cena de um babaca que quase caiu no meio da quadra. — Respondeu Carter, rindo.
        — A meu ver, foi a cena de um imbecil tentando trapacear. Isso se chama falta.
        — Jura?
        — Com certeza absoluta. Por que você não cresce, hein, Stiffler?
        — Por que não presta mais atenção onde pisa, hein, Lerman? Parece que dança na quadra.
        — Vai te catar, ô espiga de milho!
        — Bicha enrustida!
        — Vespa saltitante!
        — Bicha enrustida!
        — Veado corno!
        — Veado corno? Que merda é essa, hein, bicha enrustida?
        — Você não deveria ter dito isso numa terceira vez.
        Sem hesitar, enfiei um murro naquilo que ele chama de cara. Com o nariz sangrando, Carter fez a mesma coisa em mim. Os outros colegas tiveram que nos segurar, para que não saísse uma briga feia. A minha vontade era a de amassar todos os seus ossos. Olhei para a arquibancada e vi Sarah, minha irmã, armada. Sua arma era uma câmera digital e ela estava usando-a para filmar nossa briga. Não sei por que, mas eu ignorei o que vi e tornei a tentar alcançá-lo.
        Em um mesmo momento, ninguém que me agarrava conseguiu suportar minha força e ninguém que agarrava Carter conseguiu aguentar a força dele. Atracamo-nos com bastante força e tombamos no chão, um tentando socar e chutar o outro. Por uma grande infelicidade, a diretora passava próximo dali no momento. Ferrou!
        — Meninos, o que está havendo aqui? — Perguntou ela de olhos arregalados. — Quero os dois, agora, na minha sala.
        — Diretora Palmer... — Dizia eu.
        — Sem diretora Palmer. Tenho dito. Quero os dois na minha sala dentro de um minuto, começando neste instante.

Fomos Carter e eu, sem prazer nenhum, para a sala da diretora Palmer. Ela sentou-se em sua cadeira e nós sentamos nas cadeiras em frente à sua mesa.
        — Bom, rapazes. Expliquem-me o que está havendo — começou ela.
        — Ele cometeu uma falta, pondo seu pé na frente do meu, então eu me enfureci. Mas o motivo da briga foi por ele ter me chamado três vezes de bicha enrustida. — Mandei brasa.
        Carter não suportou em dar uma risadinha. A diretora olhou seriamente para ele.
        — E você, Carter, o que me diz? — Perguntou ela.
        — Bom, eu não cometi uma falta provável. Ele simplesmente tropeçou no meu pé e ficou com raivinha, daí eu o chamei de bicha enrustida, mas ele também me xingou bastante e me deu uma porrada na cara.
        — Por que socou a cara dele, Talles?
        Não suportei olhar diretamente para os olhos dela.
        — Eu...Eu me descontrolei.
        A diretora ficou olhando de um para o outro sem falar nada.
        — O que vai fazer conosco, diretora? — Perguntou Carter.
        — Mesmo achando que isso foi uma grande infantilidade, não estou a fim de punir vocês, até por que vocês são meus melhores alunos aqui na escola e já estamos perto das férias de fim do ano. Mas eu tenho que manter aqui a minha palavra. Os dois são tão inteligentes, habilidosos... Por que se odeiam? Eu creio que tudo isso seria motivo para serem ótimos amigos.
        — Eu não sei muito bem disso, diretora. — Argumentei. — Essa semelhança de inteligência e aparência não me permite uma personalidade completa.
        — Andam falando por aí que nós somos parentes. — Completou Carter. — Alunos de outras turmas, que não nos conhecem, nos veem e acham até que nós somos irmãos.
        — E qual é o problema de tudo isso? — Perguntou a diretora Palmer.
        — Eu não me sentiria confortável sendo parente dele, muito menos irmão. — Respondi com frieza.
        — Mas por quê?
        — Porque nós já estamos acostumados a nos odiar há um bom tempo. — Respondeu Carter.
        — Bom, então se afastem um do outro, o.k.?
        Olhávamos para nossas camisetas, até que Carter tomou coragem e disse:
        — Podemos ir?
        — Vão. Podem ir.
        Levantamo-nos de nossas cadeiras e caminhamos até a porta. Então a diretora disse mais uma coisa:
        — A propósito, Carter, você ficou em primeiro lugar. Parabéns.
        Quê? Não acredito nisso! Bom, na verdade acredito porque ele deve ter se esforçado enquanto eu dava uma de vagabundo. Era só o que faltava, eu deveria ter ficado em primeiro lugar. Ele deu um sorrisinho malvado para mim e virou o corredor.
        Andando por ali, me esbarrei com Sarah e ela estava levando à mão o instrumento de trabalho dela. Agarrei sua mão, tentando pegar a câmera, mas ela não permitiu.
        — Me solta, Talles! O que está havendo? — Bravejou ela.
        — Dessa vez, não, moça! Entregue-me a câmera.
        — Por que eu faria isso?
        — Porque eu não quero mais nenhum dos seus vídeos me sacaneando no YouTube.
        — Mas esse vídeo não vai sacanear somente a você. Os dois estavam juntos nessa briga. A propósito, belo soco! Onde foi que aprendeu a socar assim tão bem?
        — Não interessa, Sarah! Puta que pariu! Isso só vai estragar os meus planos para tirar os boatos de que Carter é meu parente.
        — E quem disse que isso vai estragar o seus planos? Ah, falando nisso, você tem que ver um artigo que eu vi num site de folclores, lendas e bruxarias. Tem uma parte que, coincidentemente, fala sobre adolescentes de olhos cor de violeta.
        — Sério? Eu quero ver.
        Sarah me levou à sala de computadores. Sentou em frente a um e se conectou.
        — Veja essa notícia que eu encontrei no site.
        — “Adolescentes super-humanos” — li. — Tá, onde eu começo?
        — Começa no terceiro parágrafo.
        — “Tóquio, a terra do sol nascente, está cada vez mais se aproximando de ser a ‘terra das esquisitices’. A capital japonesa tem vivenciado estranhos acontecimentos, começando pelo aparecimento de jovens de aproximadamente dezesseis anos de idade que têm a habilidade de correr na velocidade do vento, levantar quantidades de peso insuportáveis a um humano comum, comer fora do normal sem riscos de obesidade, beber sem nenhuma moderação e continuarem sóbrios, fumarem sem nenhum risco de dano aos pulmões...” Tá, mas isso não tem nada a ver comigo.
        — Agora, lê aqui — mandou Sarah.
        —“... As vítimas dessas estranhezas são poucas e afirmam que nunca tiveram esses surtos anormais. Muitas delas nasceram com a íris cor de violeta e viveram normalmente, até atingirem os dezessete ou dezesseis anos.” Tá, isso foi esquisito.
        — Mas isso é somente uma dedução, não se deixe levar tão fácil. Mas eu fico aqui pensando, imagine se você começa de repente a se transformar em um super-humano.
        — Esqueça, isso não vai acontecer.
        — Mas poderia.
        — Sarah, não estamos no Japão. Estamos no Brasil...
        —... E quem te assegura de que uma população milenar não tenha deixado rastros como esses aqui?
        — Nisso você tem certa razão... Mas como vamos saber se tudo isso que está escrito aí não é mentira? Isso é um site de folclores.
        — Por isso eu disse pra você não se deixar levar subitamente.
        — Pode deixar.
        — Talles, se você virasse um super-humano, você, de alguma forma, se separaria de mim?
        — Nunca.
        — Se eu estivesse em perigo, você me salvaria?
        — Sempre, mesmo se não fosse um super-humano.
        — Se estiver falando a verdade, obrigada.
        — Guarde agradecimentos para quando e se acontecer isso.
        Ela sorriu e saiu da sala.
        Fiquei pensando se seria mesmo possível eu que qualquer coisa daquele gênero pudesse acontecer comigo. Seria mais uma semelhança entre Carter e eu.         

Sarah

Eu estava acordada à noite, na sala de computadores, pesquisando mais sobre esquisitices. Era a coisa que eu mais gostava de fazer, além de perturbar meu irmão. Aproveitei para postar no YouTube o vídeo da briga entre ele e Carter. Acho que já se aproximava da meia noite. Surpreendi-me ao ouvir alguém entrando na sala.
        — Ah, é você. — Disse ao perceber que era Carter. Ele estava segurando uma sacolinha.
        — Você, acordada a essa hora? — Perguntou ele.
        — Hmm, estou vendo umas coisinhas.
        — Eu posso ver?
        — Bom, se não se importa que eu esteja sacaneando você novamente no YouTube.
        Ele deu uma risadinha.
        — Eu não ligo para isso. — Disse Carter.
        — Ele te deu um belo soco. — Argumentei.
        — Eu estava de guarda baixa.
        — Bom, já que está aqui, senta aí. Vamos conversar...
        Assim como todas as pessoas, eu tinha um segredo. E assim como todas as pessoas, eu não vou contar, até por que é tão óbvio que você descobrirá sozinho.
        — Tá, vamos conversar. — Carter sentou-se em uma cadeira.
        Abri a outra guia, onde eu estava lendo as esquisitices.
        — Eu adoro esse site. — Disse ele. — Na verdade, eu gosto de esquisitices.
        — Sério? Eu também adoro esquisitices.
        — Me surpreendi hoje ao ver uma notícia no site que falava sobre adolescentes super-humanos que coincidentemente têm olhos cor de violeta.
        — Eu também li esse artigo. Mostrei a Talles e ele também ficou surpreso.
        — Imagino que ele tenha se sentido assim.
        — Vocês dois querem mesmo não ser considerados parentes, né?
        — Exatamente.
        — Mas vocês poderiam ser ótimos amigos, em minha opinião.
        — Vou te contar um segredo. Sou soberbo demais para ver alguém tão parecido comigo roubando a minha imagem.
        — Com as brigas que andaram tendo ultimamente, creio que ganharam bastante imagem.
        — Será?
        — Não teime comigo, sou bem perceptiva.
        — Hmm, parece ser.
        Fiquei um momento em silêncio, até conseguir falar.
        — Ai, não sei por que vou dizer isso... — Dizia eu.
        — Isso o quê? — Perguntou Carter.
        — Você está... com sono?
        — Não, nem um pouquinho. E você?
        — Também não.
        — Por que quer saber?
        — Bom, é que...
        Ele franziu a testa, como se quisesse mesmo saber o que eu estava a fim de dizer.
        — A menina perceptiva precisa da ajuda de um cara. — Desembuchei. — Recebemos nossos boletins hoje e eu não estou muito satisfeita com minha nota em física...
        —... E quer que eu te ajude?
        — Sim. Eu estou até com a apostila aqui.
        — Você parece não gostar muito da ajuda do seu irmão, né?
        — Não gosto de dar esse prazer a ele.
        — Entendo. Gosta de açaí?
        — Adoro.
        — Eu... trouxe um pouco.
        — Sério? Cadê?
        — Está aqui. — Carter puxou um copo enorme de sorvete de açaí de dentro da sacolinha.
        — Como você conseguiu isso? — Perguntei surpresa.
        — Vou te contar um segredo...
        — Mas um segredo?
        — É. Eu assalto toda a noite a cozinha da escola.
        — Bandido. Por isso que eu tenho notado que o estoque está quase vazio. Você nem divide com os amigos.
        — Não tenho amigos.
        — Ah, que pena. Eu tenho alguns.
        — Desse tipo de amigos a que você se refere eu tenho vários, pra dar e vender. Mas eu costumo chama-los de colegas. Eu sou um tipo de cara que reserva com bastante cuidado a palavra amigo.
        — Quer saber, você tem razão. Nós temos que reservar essas palavras às pessoas que realmente merecem.
        Ele assentiu.
        — Então, que parte da física te incomoda?
        — Só o fato de a física existir me incomoda. Eu acho que eu não saco muito bem de nenhum setor da matéria.
        — Então vamos começar do começo?
        — Seria uma boa.
        Nós ficamos lá na sala de computadores até às duas horas da manhã. Ele conseguiu pelo menos enfiar alguma coisa de física na minha cabeça, mesmo eu achando que fosse impossível. E nós também aproveitamos o açaí, acabou tudo.
        — Carter, é óbvio que em algum outro dia eu vou precisar da sua ajuda novamente.
        — O.k. Pode me chamar quando precisar. Eu costumo a não ter compromissos e a ter muita insônia. Então acho que quase sempre você pode me chamar.
        — Que bom. Que tal amanhã?
        — Ótimo.
        — Pode ser depois da aula?
        — Com certeza. Vai ser bom que eu tenha uma companhia para estudar.
        — Então, boa noite!
        — Boa noite!
        Ao chegar ao quarto das meninas do primeiro ano, me joguei na cama com toda a força e apaguei. Será que depois disso você conseguiu desvendar o segredo?

Talles

Passei a noite tentando imaginar se aquilo que estava escrito no site de esquisitices era real, se poderia realmente acontecer comigo. Poderia ser lorota. Mas aí eu tive um sonho, foi muito estranho. Eu acordei flutuando, quase tocando no teto. Quando percebi, estava de pé, mas não no chão, nas paredes. Senti-me o próprio spider-man. Minha audição estava aguçada, eu consegui ouvir duas pessoas conversando na sala de computadores, que ficava no corredor ao lado do refeitório e estava longe. Percebi que estava morrendo de vontade de beber uma coisa, eu estava com vontade de consumir álcool. Mas acontece que eu nunca tinha bebido álcool na minha vida, e agora eu estava com uma louca vontade de beber qualquer coisa que tivesse isso.
        Lembrei-me que os professores guardavam vinho na sala deles. Eu estava com tanta vontade de beber que não suportei demorar. Caí no chão e corri numa velocidade enorme. A velocidade era tanta que eu mal podia enxergar por onde passava. Acho que dei dez voltas na escola inteira até chegar à sala dos professores. Quando cheguei lá, abri a porta e fui até a prateleira de vinhos, que estava trancada com cinco grandes cadeados. Fiquei pensando em como abri-los. Minha sede era tanta que eu puxei o cadeado e, para minha surpresa, ele arrebentou. Puxei o resto deles.
        Incrivelmente eu bebi todas as quinze garrafas de vinho em poucos minutos. Depois eu vi que havia umas garrafas de uísque em mais uma prateleira trancada, só que com sete cadeados. Novamente puxei todos os cadeados, sem fazer o menor esforço. Bebi todas as garrafas. Sempre me disseram que uísque ardia bastante, mas eu o tomei como se estivesse bebendo água. Gradativamente a minha vontade foi passando. Foi assim que eu acordei.
        Acordei transpirando bastante. Com certeza aquilo foi um sonho. Olhei ao redor e vi que ninguém mais estava no quarto. Então olhei para o relógio e vi que era cedo demais para todos já terem acordado. Levantei-me para ver onde os outros garotos estavam. Não precisou que eu andasse muito para descobrir. Uma plateia estava lá fora, olhando para as paredes e para o teto.
        Aproximei-me da multidão e consegui ver para o que eles estavam olhando. Estranhas pegadas humanas cobriam todos os cantos do corredor. Elas pareciam feitas de pó de giz branco. De repente a mão de uma garota encostou meu ombro. Olhei para trás e era Bruna, uma amiga minha.
        — Talles, eu estava procurando você. Viu só isso? Que esquisito. Gostaria de saber quem foi o vândalo que fez isso. — Então puxou uma câmera do bolso e fotografou.
        Não respondi. Apenas fiquei parado, de boca aberta e nervoso.
        — Talles, você está bem? — Perguntou Bruna.
— Vem comigo, Bruna. — Disse eu. — Tomara que eu esteja errado.
— Errado sobre o quê?
— Tenho um palpite. Te conto ao chegarmos lá. Siga as pegadas, vamos à sala dos professores.
Bruna e eu fomos até a sala dos professores. As pegadas que estavam nas paredes agora haviam se transformado em um rastro que só estava no chão, e não tinha mais a forma de pés humanos.
Aproximamo-nos da porta e olhamos para o lado de dentro da sala. Estava uma bagunça, pior do que no meu sonho.
— Não acredito. — Disse eu, pondo a mão na testa e escorregando da parede até o chão.
— Nossa! — Exclamou Bruna, fotografando a cena.
— Vamos sair daqui, Bruna.
— Por que está tão preocupado?
Olhei para ela.
— Vai ter que me contar. Sou praticamente sua melhor amiga.
— Vai manter segredo?
— Claro. Pode mandar.
— Tá, mas, primeiro, vamos sair daqui.
Fomos para o pátio da escola e nos sentamos na grama. Preferi deitar nela, pois minha cabeça estava explodindo. Fiquei embaixo de uma árvore, para me tapar do sol. Respirei bastante, ainda pensando se ia contar ou não.
— Presta a tenção, não se assuste — comecei. — Eu fiz aquilo tudo. Eu fiz aquelas marcas nas paredes e eu quebrei a sala dos professores.
Bruna ficou boquiaberta e de olhos arregalados.
— M-mas por quê? — Perguntou ela.
— Eu não sei. Você não vai creditar em mim se eu disser o que eu acho que está acontecendo.
— É claro que vou acreditar em você. Vai, conta.
— Não vai acreditar, não. É maluquice.
— Conta logo merda!
— Por que você quer que eu conte?
— Porque eu gosto de saber das coisas e também sou boa em guardar segredos.
— Tá bom, então. — Abri um sorrisinho desengonçado. — Eu sou um super-humano.
Ela olhou pra mim indiferente.
— Tipo aqueles que voam e têm superforça? — Indagou. — Tipo o super man, homem-aranha etc.
— Isto.
Ela deu mais uma olhada para mim e depois olhou para frente. Alargou um sorriso e caiu na gargalhada. Eu sabia. Ela não acreditou.
— Super-humano, você? — Duvidou Bruna. — Cara, você não tem porte nenhum para um super-humano. Não que eu não acredite na possibilidade, mas já vou descartando a ideia de que você seja um.
— E por quê?
— Cara, se você é um super-humano, então levanta essa árvore!
Olhei para a árvore, cujas folhas davam sobra para nós dois. Parecia muito pesada, com sua complexidade de galhos.
— Ah, não sei, não. Acho que não consigo levantar essa coisa.
— Um super-humano no mínimo chutaria essa árvore e a derrubaria — argumentou Bruna.
— Há vários tipos de super-humanos, Bruna.
— Tá, mas você já tentou fazer isso?
— Isso o quê? Derrubar a árvore com um chute?
Bruna assentiu de olhos fechados. Depois, apoiou-se com os dois braços na grama, lançando-me um olhar desafiador. Eu me afastei um pouco da árvore, tomei impulso e lancei meu pé com toda a força contra o caule.
Não resultou em nada.
— Mais forte! — Disse Bruna.
Tentei novamente com mais força. Nada.
— Mais forte, merda! — Gritou ela.
— Estou com toda a força.
Tentei mais uma vez. A única coisa que consegui foi uma dor insuportável no pé. Caí rolando no chão, gritando.
— Está vendo. Você não é um super-humano. Desista!
— Mas eu já disse que há outras maneiras de ser um super-humano...
Bruna pareceu não prestar atenção no que eu dizia.
— Espera. Tire os tênis!
— Pra quê...?
— TIRA O TÊNIS! — Berrou ela.
— T-tá, tá bom. Como queira.
Obedeci e tirei o tênis. Não estava a fim de levar uns tapas.
— Tá. Chuta com a mesma força de antes, agora.
— Tá maluca?
— Vai logo!
Chutei com toda a força. Novamente, não aconteceu nada. Já era de se esperar.
— Esta vendo, Bruna — comecei. — Isso significa que ou eu sou outro tipo de super-humano, ou eu não sou nenhum tipo. Esquece, Bruna. Eu não tenho superforça, e espero não ter nunca. Mas, bem que eu adoraria ser um super-humano... — Notei que Bruna estava parada, olhando para a árvore. —... O que foi, hein?
Bruna apontou.
        Virei-me para ver e levei o maior susto da minha vida. Do local onde eu havia chutado a árvore começou a surgir fogo.
        — Ah, meu Deus! — Exclamei.
        — Talles, apaga isso! — Gritou Bruna.
        — Como?
        — Sei lá! Usa a camisa.
        Tirei a camiseta do corpo e comecei a batê-la no caule, a fim de apagar o fogo. O fogo só aumentava cada vez mais.
        — Apaga isso logo, Talles, se não vão achar que nós que pusemos fogo na árvore.
        — E fomos nós, mesmo!
        — Na verdade foi você, né, queridão.
        — AAAH, eu não consigo apagar. Isso só está aumentando.
        Uma raiva crescente começou a emanar de dentro de mim. Desespero por não conseguir resolver o problema também. Raivoso, sem saber como, dei um urro na árvore, que foi parar longe.
        Bruna arregalou os olhos.
        — Vamos sair daqui, Talles! — Gritou ela.
        Ambos saímos correndo para dentro da escola, antes que a primeira pessoa visse. Entramos em uma sala de aula e fechamos a porta.
        — Arf! O que foi aquilo, Talles?
        — Eu não sei.
        — Como você conseguiu fazer aquilo?
        — Eu não sei.
        — Tem certeza de que não sabe?
        —... Eu não sei.
        — Isso quer dizer “Sim, eu não sei de nada.” ou “Não, eu não sei nem mesmo se tenho certeza ou não.”
        — Não sei, não sei. Não estou nem entendendo o que você está falando. É assim que tem sido a minha vida, Bru.
        Ela me abraçou.
        — Aí, você pode contar comigo, cara. Seu segredo está guardado comigo. Agora, eu nunca pensei que fosse ter um amigo como você. Super-humano... Ai que legal!
        — Esquece essa história de super-humano, Bruna.
        — Tá bom. Está bem. Então, você continua sendo o mesmo Talles de sempre. Nada mudou.
        — Está bem assim.    
        O sinal tocou e Bruna me soltou. Então a gente foi andando e ela foi para o dormitório das meninas. De longe ela fez um sinal para mim, significando segredo. Certamente eu nunca havia tido problemas com segredos com ela. Era uma boa guardadora de segredos.
        Depois eu fui para a sala de aula e o professor de Geometria entrou logo depois. A aula já não estava muito legal, quando a diretora da escola entrou na sala de aula. A cara dela não era das melhores.
        — Ouça bem, pessoal. Nós levamos um susto muito grande hoje. Nossa escola está cheia de marcas brancas nas paredes. Parece que todos aqui já perceberam isso, né? E a sala dos professores está toda quebrada. Tá, por fim, a árvore da escola. Uma árvore que já tinha oitenta e cinco anos de idade. Eu gostaria de saber quem foi o responsável por esses atos, até o termino das provas finais, até o fim do mês. 

Se não tiver uma resposta até lá, terei que tomar medidas mais rigorosas.

        E saiu da sala com bastante raiva. Pelo visto, foi também dar o mesmo aviso em outras turmas. O professor continuou a aula, agora mais abalado.
        Eu estava com medo, muito medo. Em algum momento iriam descobrir que fui eu, porque a qualquer hora eu poderia ter esses descontroles novamente. Eu me sentia perdido.
        No meio da aula eu comecei a sentir uma estranha dor de estomago. Eu estava a fim de vomitar e ao mesmo tempo não estava mais a fim de vomitar. Pedi imediatamente para o professor para que ele me deixasse ir ao banheiro, e avisei logo que estava passando mal e que ia demorar um pouco lá.
Levantei-me da carteira e sai da sala de aula. Caminhei, sem pressa, pelos corredores vazios, já sentindo certo alívio na barriga. De repente, a barriga borbulhou barulhentamente. Então, eu corri para o banheiro. Ao entrar em uma cabine, eu não conseguia me decidir se me sentava ou se eu mirava minha boca no vaso. Depois de muito pensar, decidi que precisava vomitar alguma coisa, então fiz a segunda opção. Precisou que eu exigisse algum esforço para que eu conseguisse alguma coisa. Ao invés de eu vomitar, eu acabei cuspindo fogo, bastante — esquisito assim.
— Ai, o que está havendo comigo. — Comecei a conversar comigo mesmo. — Tales, amigão, por favor. Aguenta isso. Aguenta. — Cuspi mais fogo. — O que estiver acontecendo, você vai conseguir superar. — Tossi um pouco e saiu fumaça e um pouco de fagulha da minha boca.
Cuspi fogo continuamente. Comecei a sentir grande queimação nos pulmões. Senti meus olhos arderem bastante, até que minha visão foi ficando embaçada. Eu não suportei muito aquilo e acabei desmaiando.

Acordei sem enxergar muito bem. Minha visão ainda estava bem embaçada. Como estava numa cama branca percebi que estava numa enfermaria.
        — É melhor que você use isso. — Disse a voz de uma mulher. Ela pôs em minha mão uns óculos.
        Pus os óculos em meus olhos e tudo ficou claro. Eu estava mesmo na enfermaria.
        — Que horas são? Eu preciso voltar para a sala de aula. — Ia dizendo eu.
        — São nove horas da noite. — Disse a enfermeira.
        — O QUÊ?! — Exclamei de susto.
        — Calma, calma. Tudo corre bem. Você não vai mais cuspir fogo. A menos que queira cuspir.
        — Ah, graças a Deus... Peraí! Como você sabe que eu estava cuspindo fogo?
        — Eu simplesmente sei, Talles. — Explicou a enfermeira.
        — Tá, mas como?
        — Você quer mesmo saber?
        — Adoraria, se você pudesse me contar.
        — Eu sou uma maga, assim como você, Talles.
        Eu olhei seriamente para ela.
        — Ah, não. Por favor, já chega de maluquices por hoje, está bem?
        — Mm... Você acha mesmo que aquilo que estava acontecendo com você era simplesmente maluquice?
        — E não era?
        — Talles, você é um mago.
        — Haha, tipo Harry Potter?
        — Não, querido. Você não usa varinhas.
        — Rapá, tô gostando dessa ideia... Ah, meu Deus! Como eu posso estar gostando de uma coisa dessas.
        Então, eu olhei para a enfermeira.
        — Tipo, eu posso fazer magia?
        — Magmancia, Talles. Magmancia. É a magia dos magos. Por enquanto você pode fazer só um pouquinho. Cuspir fogo já é um exemplo. Na verdade, mexer com a magmancia é uma prática.
        — Então, quer dizer que praticando-a eu poderei fazer tudo?
        — Quase tudo.
        — Que legal. — Então, me subiu à cabeça um pouco de realidade. — Mas, isso é mesmo verdade?
        — Você quer experimentar essa realidade?
        — Eu posso?
        — É claro que pode. Pule pela janela para ver.
        — Ah, mas assim eu morro. Se você consegue fazer as mesmas coisas que eu, por que não pulas também?
        Sem hesitar, a enfermeira pulou da janela. Quando me levantei para ir ver, ela já estava lá embaixo.
        — Vamos! Pule! — gritou ela.
        Posicionei meus pés na janela e olhei para baixo. Senti um calafrio, então fechei os olhos. Pulei. Sem sentir nenhuma dor, eu parei no chão, sem nenhum risco de vida.
        — Vamos correr? — Perguntou a enfermeira, que saiu correndo na velocidade do vento. Fiz o mesmo, embora ainda estivesse um pouco lento. Mas, com o passar de dois segundo, já estava em alta velocidade, como ela. Era uma sensação muito boa. Era a melhor coisa que já tinha sentido na minha vida.
        A alegria era tão grande que eu comecei a pular e parecia que a terra era uma cama elástica, pois cada pulo me levantava a cinco metros de altura. Em um dos meus pulos, eu fui parar numa árvore. Mas eu não me machuquei — se é que dali em diante eu me machucaria mais alguma vez.
        A enfermeira estava do meu lado, na árvore. Ela estava olhando para o céu escuro e não vestia mais sua roupa de trabalho. Agora, ela estava usando uma roupa preta bem justa, que combinou bastante com sua pele morena, e os cabelos castanhos estavam presos.
        — Você ainda não me explicou por que eu passei por tudo aquilo. — Disse eu.
        — Você estava passando por uma fase de metamorfose. Todos os magos passam por essa fase.
        — E quem é você?
        — Me chame de Nara. Estou aqui porque seu pai me mandou.
        — Meu pai?
— Seu pai e sua mãe também são magos, Talles.
Por um momento, me foi inacreditável. Mas, depois, me acostumei com a ideia, até por que eu já tinha passado por muitas metamorfoses naquele dia.

Sarah

Eu estava novamente lá, na sala de computadores, navegando no mesmo site de esquisitices de sempre. Eu havia lido um texto que dizia que as mesmas estranhas coisas que estavam acontecendo no Japão haviam se espalhado pela Austrália, na América Latina, especificamente no Chile e na Argentina e na América Anglo-saxônica.
        Parei de ler ao perceber uma palavra nova, no texto. Magmancia. O que significava isso?
        Anotei na minha mão, para me lembrar de pesquisar isso depois.
        Li que os fatos se assemelhavam com a fantástica história da criação da magmancia. Esquisito. Não é estranho que se encontre coisas esquisitas lá, mas, ultimamente, aparecera coisas que eu nunca tinha ouvido falar. Novamente, anotei na minha mão.
        Eu tinha acabado de ir à enfermaria, para ver como meu irmão estava, mas ele não estava mais lá, o que me fez pensar que ele já tinha ido para o quarto dos meninos. Talles tem sido meio estranho ultimamente. Parece que eu deveria entrar em contato com Bruna rapidamente. Ela sim sabia de todos os segredos dele, até por que não imagino que sejam muitos.
        Tinha começado a chover. As gotas da chuva embaçavam o vidro da janela. Achei que deveria sair da sala, não porque estava ficando tarde, mas sim porque estava frio lá.
        Levantei-me da cadeira em que estava e sai dali, já sentindo minhas costas geladas. Mas era tudo o que eu precisava naquela noite para cair na cama: frio. Eu detestava sentir calor, e isso pode ser uma das muitas explicações para eu não conseguir dormir direito à noite.
        Passei pelo corredor com luzes acesas. Uma corrente de ar passava por ali. Por mais que eu adorasse frio, eu também tinha certa facilidade para ficar resfriada. Eu não queria passar o fim do ano letivo com o nariz escorrendo e tendo que levar lencinhos descartáveis para as aulas.
        Eu levei um pequeno susto quando uma porta bateu logo atrás de mim. Olhei para trás. Era a porta de um armário de limpeza, ela estava aberta. Fui até lá e fechei. Não sei se foi pela força do vento, mais ela abriu novamente. Olhei dentro dela, para ver se havia alguma coisa que interrompesse o fechamento dela. Não, nada. Tudo estava em seu lugar. Vassouras. Baldes. Esfregões.
        Ai, estou perdendo tempo, disse a mim mesma.
        Então, eu observei melhor e enxerguei uma coisa brilhante no balde. Aproximei-me um pouco e encontrei um cordão. Puxei-o e vi um medalhão preso no final.
        — Uau! — Exclamei quando o brilho bateu em meu rosto. Perguntei-me de quem era aquele objeto. Guardei o medalhão no meu bolso. O dono com certeza iria aparecer em algum momento.
        Logo que ia fechando o armário, ouvi um som, como se fosse fogo estalando numa fogueira. Olhei para trás...
        PRESTE BEM ATENÇAO NA DESCRIÇÃO DO QUE VI: atrás de mim estava uma criatura ereta como um homem. Era quase nua, mas tinha pequenos pelos. Sua pele era verde e a cabeça era a parte mais feia do corpo. Era metade negra, metade branca, e os olhos eram completamente amarelos, cor de pus. O nariz parecia uma pera e a boca era comum, como a de um humano. O cabelo era só fogo. Tinha uma calda longa com o que parecia ser a ponta de uma flecha, no final.
        A criatura tentou me agarrar, e a única coisa que pude fazer foi correr e gritar. O monstro me perseguiu, pulando para lá e para cá.
        — SAI! — Tentei espantá-lo. Rá, tá bom que uma coisa daquelas iria embora com as minhas ordens.
        Eu não tinha absolutamente nada para me defender. Então, continuei correndo sem parar. Ao passar pelo segundo corredor do terceiro andar, eu me encontrei com Carter.
        — Por que está correndo? — Perguntou ele.
        Eu olhei para trás, e a resposta estava dada. O monstro havia corrido atrás de mim. Então, eu gritei:
        — O que você quer?
        O mostro ergueu seu braço direito, lançando-o em minha direção. Seus dedos com unhas afiadas perfuraram meu seio esquerdo e a criatura arrancou meu coração. A última coisa que eu vi, antes de acontecer o que parecia ser a minha morte, foi Carter com uma cara horrorizada, enquanto uma lágrima saia de cada um de seus olhos. Depois, só houve escuridão.